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Adoção do ensino híbrido nas escolas públicas exige o preparo de gestores e gestoras

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Especialista no tema, Lilian Bacich alerta para a necessidade de as lideranças se organizarem para apoiar o corpo docente na fase de transição

A suspensão das aulas presenciais pegou a comunidade escolar de surpresa e levou as redes de ensino a adotar o ensino remoto praticamente às pressas. Agora que se discute a possibilidade de incorporar o ensino híbrido, essa história não precisa se repetir, reforça Lilian Bacich, uma das grandes especialistas no tema no Brasil. “Com exceção de Manaus, que já retornou, nas demais redes há tempo para se organizar”, enfatiza.

Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora da Tríade Educacional, Bacich afirma nesta entrevista que a equipe de gestão deve aproveitar o período para se preparar e pensar em meios de oferecer suporte ao corpo docente. Ela também explica em detalhes quais são as condições mínimas necessárias para as escolas adotarem a prática e quais modelos de ensino híbrido podem funcionar melhor nas redes públicas brasileiras.

 

Quais são as transformações fundamentais que uma escola deve promover para adotar o ensino híbrido?

O ensino híbrido demanda uma série de transformações, começando pelos professores e pelas professoras, que devem assumir um papel mediador, de pessoas que participam da construção de experiências de aprendizagem e não se restringem à exposição de conteúdos. O papel do estudante é outro que tem de mudar. Estudantes devem assumir, gradativamente, uma postura mais ativa, o que significa, em outras palavras, se envolver mais com o processo e ter condições de construir conhecimentos. A avaliação também precisa ser revista, pois uma avaliação baseada apenas na memorização de conteúdos não é o que se pretende na proposta de ensino híbrido. A avaliação precisa ser processual. Além disso, você precisa repensar os espaços para acolher situações diferentes daquela em que o professor ou a professora é o centro do processo e assume um papel de expositor dos conteúdos para crianças e jovens. Tem várias questões que precisam ser revistas, portanto. Essa revisão passa por aspectos sensíveis, que demandam discussões aprofundadas, mas isso deve acontecer. É positivo, pois somente assim conseguiremos avançar para uma educação mais motivadora, que coloque estudantes no centro do processo.

E em termos de infraestrutura, quais itens são essenciais para trabalhar com o híbrido?

Para trabalhar com qualidade, obviamente é importante ter algum recurso digital na escola, até porque precisamos levar estudantes a se envolverem com a cultura digital. Mesmo que a tecnologia não esteja presente em suas moradias, a escola precisa se responsabilizar pela oferta de situações que desenvolvam a cultura digital, que é uma das competências gerais da BNCC. Portanto, penso que, minimamente, você precisa ter dispositivos que possam ser acessados pelas crianças e pelos jovens. Às vezes, as pessoas pensam que é preciso criar uma estrutura de transmissão da aula para todo mundo, mas isso não é o mais importante. O fundamental é ter dispositivos à disposição das crianças e dos jovens para eles desenvolverem habilidades para lidar com o digital. Se conseguirmos prover acesso à internet, melhor ainda. Contudo, sabemos que muitas instituições não têm esse acesso e conseguem fazer uma série de propostas off-line. Funciona, pois ainda nessas condições é possível se aproximar da cultura digital e produzir um vídeo, um mapa conceitual ou qualquer outro material que considere a apropriação de conhecimentos. Além disso, também não precisa ter um dispositivo para cada um, e eles não precisam estar em todas as salas de aula. Esse acesso pode acontecer em um laboratório, tanto que um dos modelos do ensino híbrido é de laboratório rotacional. Aliás, se houver escassez de recursos, um laboratório de informática cabeado pode ser até mais viável que a oferta de uma estrutura de wi-fi nas escolas. A ideia do laboratório, em si, é antiga, mas é possível repensar o espaço desse laboratório. Os antigos laboratórios de informática eram parecidos com salas de aulas de datilografia, com os dispositivos todos enfileirados. Os laboratórios que possibilitem um espaço disponível para trabalhar em grupos podem, ser uma boa opção.

Dada as condições médias das escolas da rede pública, esse modelo rotacional é o mais adequado?

Desde que a escola possa disponibilizar um espaço para esse acesso aos dispositivos, esse modelo funciona muito bem. Você organiza a turma e coloca um grupo no laboratório e outro para debater com a professora ou o professor. Depois de um determinado tempo, você inverte. É um modelo muito interessante. Existe outro modelo mais disruptivo, mas que, dependendo de como a rede consegue se organizar, também é possível. É o modelo virtual aprimorado, em que você adota roteiros para serem trabalhados em casa. Dependendo das condições dos estudantes, você pode ter um roteiro mais analógico, ou seja, com atividades no papel, ou um modelo que envolva algum tipo de produção digital ou que tenha alguma proposta com vídeos ou podcasts. Os estudantes realizam as atividades em casa e, quando vão para a escola, os educadores solucionam dúvidas, promovem discussões, tudo a partir desse roteiro prévio. É a ideia da sala de aula invertida, com a diferença de que esse modelo permite otimizar a carga horária dos profissionais da escola. É possível que nem todo o corpo docente retorne em função de uma série de fatores. Nessas condições, a escola deverá se organizar para que os estudantes, quando estiverem presentes, passem pelo laboratório de informática (especialmente se eles não têm acesso a essa cultura digital em suas casas) e tenham um tempo com tutoria para que estes acompanhem os estudos, verifiquem onde houve avanços e quais novos desafios podem ser apresentados.

Esse modelo ‘virtual aprimorado’ pressupõe que as crianças e os jovens tenham autonomia, organização e disciplina para conduzirem o processo de construção do conhecimento. Como algumas pesquisas indicam que eles estão enfrentando dificuldades nessa frente, não seria o caso de oferecer algum preparo?

De certa forma, sim. Mas o fundamental é que o alunado seja estimulado a realizar as atividades. É preciso informar que a avaliação é formativa e todas as atividades realizadas compõem a avaliação. Isso é algo que motiva extrinsecamente, já que muitos não têm tanto protagonismo para assumir os estudos de forma autônoma. Se for dada essa orientação de que a atividade fará parte da avaliação, pode ser que o envolvimento seja maior. Mas é preciso reconhecer, sim, que essa transformação de papéis, mencionada anteriormente, é difícil para todos os envolvidos no processo: estudantes, educadores, comunidade escolar.

Assim como o ensino remoto foi adotado às pressas, corremos o risco de adotar o ensino híbrido novamente às pressas?

Com exceção de Manaus, que já retornou, nas demais redes há tempo para se organizar. Em São Paulo, por exemplo, a volta acontecerá em outubro. Nesse sentido, as lideranças precisam se organizar, pensar que tipo de formação vão oferecer para o corpo docente para que se adequem a essa nova realidade.  Há tempo, pouco, mas há, de se organizar e pensar em meios de dar suporte ao corpo docente, oferecendo, por exemplo, alguns roteiros pré-elaborados. Isso pode ajudar a não sobrecarregar demais o corpo docente. Essa organização do que será feito com o retorno dos estudantes pode dar um apoio e é uma forma de deixar claro para o corpo docente o que é esperado em uma proposta híbrida. Para isso, é importante que as lideranças também se formem, para que possam construir, junto com o corpo docente, uma proposta de retorno que considere as aprendizagens dos estudantes.

De maneira geral, qual é a percepção de gestores e gestoras sobre o ensino híbrido? Poderia comentar suas impressões com base em sua grande experiência com esse público?

De maneira geral, eles entendem a necessidade do ensino híbrido e, nas secretarias executivas, nas coordenações de núcleos pedagógicos, há um interesse muito grande pelo tema. Todos querem entender como funciona na prática, suas possibilidades, mas as discussões sempre travam na falta de infraestrutura tecnológica das escolas. Sobre esse ponto, acho que é preciso esclarecer que a tecnologia é realmente necessária, mas que dá para trabalhar com o híbrido de outro modo, em um formato emergencial – isso é diferente de dizer que dá para fazer sempre sem tecnologia, porque o ensino híbrido, por definição, envolve as tecnologias digitais. Mas, temporariamente, dá, sim.

A pandemia deve aprofundar as desigualdades entre crianças de diferentes classes sociais. O ensino híbrido tem potencial para atenuar esse quadro?

Quando você pensa no retorno do presencial – um dos pontos fundamentais do ensino híbrido –, você consegue identificar formas de atenuar esse quadro. Enquanto as crianças e os jovens ficarem em casa, continuaremos com esse ponto de interrogação, sem saber exatamente como eles estão. Mas, quando tivermos o retorno do presencial, teremos condições de estar mais perto dos estudantes e entender suas dificuldades e facilidades. Nos modelos da sala de aula invertida e da rotação por estação, por exemplo, os professores e as professoras sairão da função de apresentar os conteúdos para a função de discutir e ver o que os estudantes aprenderam nesse período. Se você conseguir identificar as dificuldades, as facilidades e o que é possível fazer para orientar essas crianças e esses jovens, você caminha para a ideia de personalização, o que pode contribuir com o enfrentamento dessa desigualdade que a pandemia nos trouxe.

Essa personalização de que você fala exige necessariamente o uso de plataformas adaptativas?

Nos Estados Unidos e em outros países que utilizam o ensino híbrido há mais tempo, há muitas plataformas adaptativas e na literatura encontramos muitas experiências com o uso desses recursos. Porém, aqui no Brasil, quando participei como parte da equipe de gestão do Grupo de Experimentações em Ensino Híbrido, em 2014, tivemos docentes de rede pública e nós não focamos nas plataformas adaptativas, até porque não temos esse recurso em todas as redes. Se você tiver uma plataforma ou outro meio de coletar esses dados digitalmente, isso facilita o trabalho docente. Mas também é possível coletar dados sobre a aprendizagem de outra forma, por meio de observação e registros em papel mesmo. O importante é coletar as evidências para poder atender aos estudantes, compreendendo melhor suas dificuldades.

Em sua avaliação, qual será o legado dessa pandemia para a educação pública brasileira?

Sobre esse tópico, há duas coisas para analisar. As redes que colocaram os alunos e as alunas para pensar, refletir e realizar atividades em diferentes formatos, entregando conteúdos via TV, rádio, WhatsApp e desenvolveram uma postura protagonista e investigativa terão um legado positivo. Estas conseguiram avançar nos novos papéis e enxergar novas formas para a relação de ensino e aprendizagem. Agora, aquelas que só se propuseram a entregar conteúdos e não conseguiram acompanhar as produções, certamente, terão mais desafios. O maior legado é termos reinventado os papéis de educadores, estudantes, gestão e partir de uma análise do potencial dos recursos digitais para a aprendizagem e considero que essa reflexão poderá estimular, e muito, o desenvolvimento de políticas públicas que comecem a olhar para o século XXI com todo o potencial que temos para aprender de diferentes formas.

E quanto ao corpo docente? A experiência enfatizou a necessidade de desenvolver competências digitais?

Os professores e as professoras tiveram uma curva de aprendizagem que suplantou qualquer outra ação de formação que alguma rede tenha tentado fazer. Todos se engajaram em descobrir o que fazer para o aluno aprender mais e melhor. Dessa forma, a curva de aprendizagem desses profissionais teve um crescimento exponencial. Estamos, desde março, nesse movimento de aprendizagem constante e, desde então, a quantidade de pessoas que querem participar de discussões, de webinários, para desenvolver competências digitais só aumentou. Na minha opinião, esse período enfatizou a necessidade de investimento na formação docente. As redes precisam, cada vez mais, oferecer programas de formação que coloquem o professor em ação, aprendendo na e pela prática, considerando a homologia de processos. Somente com uma oferta frequente e coerente conseguiremos envolver todos os profissionais da educação, formá-los e pensar uma educação que não seja centrada na figura dos educadores, mas que considerem o estudante no centro do processo.

 

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